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Crescimento de crianças migrantes em Curitiba força adaptação da rede escolar para educação multicultural e acolhimento familiar

Professora ensina canção tradicional da Venezuela para integrar alunos migrantes "Foi um caminho longo. Tive que ir de barco, depois de avião e também de ca...

Crescimento de crianças migrantes em Curitiba força adaptação da rede escolar para educação multicultural e acolhimento familiar
Crescimento de crianças migrantes em Curitiba força adaptação da rede escolar para educação multicultural e acolhimento familiar (Foto: Reprodução)

Professora ensina canção tradicional da Venezuela para integrar alunos migrantes "Foi um caminho longo. Tive que ir de barco, depois de avião e também de carro. Passamos por três países até chegarmos à nova casa onde íamos morar", descreve Fran Carlo Rodriguez Espada, 7 anos, sobre a viagem de saída de Cuba. O menino, simpático e bem humorado, está há poucos meses em Curitiba. Ele é do 2º ano da Escola Municipal Batel. Segundo a Prefeitura de Curitiba, é uma escola que tem mais de 30 alunos de diferentes nacionalidades. Está sendo alfabetizado em português, embora tenha começado a aprender a escrever em Cuba. “Oi é a minha palavra favorita - chego na escola e digo oi”, conta, sorrindo. Em setembro, g1 e RPC, afiliada da TV Globo no Paraná, visitaram escolas municipais para a série de reportagens 'Infâncias em Travessias', com o objetivo de compreender a adaptação de crianças migrantes na primeira infância até os 10 anos. A reportagem conversou com alunos e mães, que destacaram a importância de respeitar a memória e os vínculos de pertencimento com os países de origem. ✅ Siga o g1 Paraná no WhatsApp Segundo dados da Secretaria Municipal da Educação obtidos pelo g1, em 2024, a rede de ensino de Curitiba contabilizava 4.239 estudantes migrantes. A maior parte deles está no Ensino Fundamental. Em 2025, os cubanos formaram o segundo maior grupo de migrantes na educação municipal, com 676 alunos — cerca de 13,7% do total. A maioria é de venezuelanos: 3.476 estudantes, representando mais de 75% da população migrante nas escolas municipais. Ao todo, a rede recebe crianças e adolescentes de 56 nacionalidades diferentes, segundo a secretaria. Na rede estadual de ensino, são 17.700 alunos estrangeiros – quase 11 mil deles são venezuelanos e mais de 2 mil haitianos, conforme a Secretaria Estadual da Educação (Seed). A psicóloga Claudia Vidigal e representante da Fundação Van Leer no Brasil, organização independente que promove o desenvolvimento integral na primeira infância, afirma que é essencial criar espaços em que cada criança possa compartilhar suas experiências e brincadeiras, valorizando sua história e reconhecendo as diferenças entre todos. Cada uma teve uma infância num lugar diferente e pode trazer a sua brincadeira favorita, a sua vivência. Assim, ela se sente parte do grupo, e as outras também. Para Cláudia, o desafio é evitar que as crianças migrantes e refugiadas se vejam como “as diferentes”. "Todos são diferentes entre si, para além da nacionalidade — um é preto, outro é branco, outro é indígena. Normalizar essas diferenças é fundamental", conclui. Navegue nesta reportagem: Alfabetização, brincadeiras e memória afetiva Pertencimento e memória do país de origem O acolhimento versus o 'ciclo de nãos' Pesquisadora cria protocolo de acolhimento para crianças migrantes Serviços de acolhimento para migrantes no Paraná ▶️ Este texto faz parte da série "Infâncias em Travessia". Com foco na primeira infância e nos impactos das políticas públicas sobre famílias migrantes, os textos discutem e mapeiam os caminhos físicos, emocionais e sociais que crianças migrantes e refugiadas percorrem na chegada ao Paraná. Acesse aqui todos os textos da série. Alfabetização, brincadeiras e memória afetiva Fran Carlo Rodriguez Espada tem 7 anos Maycon Hoffmann/RPC Apesar de ser um desafio para Fran Carlo, a língua também se tornou um meio de se conectar com os colegas de turma. Ele disse que também quer ensinar espanhol para a irmã que está a caminho. "Quando minha hermanita tiver sete anos, vou ensinar português a ela. Ela vai se chamar Ana Vivian: Ana, de minha mãe, e Vivian, de minha avó." No dia a dia, Fran Carlo faz amizades rapidamente e compartilha com os novos colegas as brincadeiras cubanas, como o "peta-peta", uma versão do "pega-pega”, que virou parte da rotina da turma da escola. Ele costuma tomar a iniciativa para fazer amigos, "Eu pergunto: 'Quer ser meu amigo?' e alguns dizem sim. Outros dizem não, e às vezes são maus comigo." Ao mesmo tempo que tenta se adaptar a vida atual, Fran Carlo também leva consigo a saudade de Cuba. "Sinto falta de todas as coisas divertidas que eu fazia. Quando eu nasci, faziam uma festa na escola." Apesar da saudade, ele diz que está feliz na nova cidade. A vida ao redor da escola, como os parquinhos, ajuda na adaptação. "O meu lugar favorito por aqui são os parques próximos da casa e da escola e também gosto muito do Passeio Público [...] Eu encontro vários amigos no caminho [da escola]. Em Cuba, minha escola era muito grande, e esta também é." Na vizinhança conta que já fez amizades. "Todos os dias eu acordo, um amigo vem me chamar, chama meu nome, e eu digo: ‘O que foi? O que foi?’. Eles dizem: ‘Vamos brincar!’. Aí eu me visto e saio para brincar. Abro a porta e jogo até escurecer. Sempre jogamos até de noite." Pertencimento e memória do país de origem Dayane de Ponte veio da Venezuela e mora em Curitiba com as duas filhas. Ela lembra que os primeiros meses no Brasil foram muito difíceis, principalmente pela falta que sentia da família e amigos. Nesse processo, a Escola Municipal Omar Sabbag, segundo Dayane, foi essencial para a adaptação – tornou-se uma rede de apoio, oferecendo segurança e acolhimento. “Hoje me sinto tranquila em trabalhar e deixar as meninas na escola. No começo, eu tinha muito medo de que sofressem preconceito, porque já ouvi outras mães dizendo que isso acontece.” A unidade é, atualmente, a escola com o maior número de estudantes migrantes e refugiados da rede municipal de Curitiba — são 122 alunos estrangeiros, parte de um universo de mais de 4 mil estudantes migrantes matriculados nas escolas da capital paranaense. Dayane de Ponte veio da Venezuela e mora em Curitiba com as duas filhas Maycon Hoffmann/RPC Entre os momentos mais marcantes para Dayane está o dia em que soube que a filha aprendeu, na escola brasileira, a canção “Los Pollitos Dicen”, tradicional na Venezuela e em outros países da América Latina. “É a primeira música que todas as crianças aprendem lá”, explica. O trecho, cantado por Alana, a filha mais nova, emociona: 🎶 “Los pollitos dicen pío, pío, pío [os pintinhos dizem pio, pio, pio] cuando tienen hambre, cuando tienen frío [quando têm fome, quando têm frio]. La gallina busca el maíz y el trigo [A galinha busca o milho e o trigo] les da la comida y les presta abrigo [lhes dá comida e lhes dá abrigo]...” 🎶 Dayane conta que quase não canta mais em casa, mas ouvir a filha entoando a canção na escola foi um momento poderoso de pertencimento. "Foi muito bonito. Saber que a professora ensinou essa música às crianças brasileiras me emocionou. Para mim, foi uma forma de reconhecer e respeitar a nossa cultura." Com orgulho, ela conta que a filha também ajuda os colegas com traduções em sala de aula. "Ela disse que ajuda os outros. Isso me deixa muito feliz. Quero que não seja só essa música, mas muitas outras, para que possam compartilhar nossas tradições", diz Dayane. A diretora da Escola Osmar Sabbag, Helga Camila Batista Aguiar, também se emocionou com a atividade. "Foi algo simples, mas que trouxe de volta a memória do país, da língua e da cultura da família. Esse tipo de gesto tem um impacto muito grande", destaca. Alana Fernanda de Lima de Ponte, de 8 anos, sonha em ser artista — “artista de desenhar”, como ela mesma diz — e confessa que adora as comidas de Curitiba e, principalmente, a escola. A filha mais velha, Paula Antonella de Lima de Ponte, de 12 anos, fala português com fluência e se destaca na escola. Participa de diversos projetos, como robótica, e representou a escola em viagens para outros estados. “Eu gosto muito da escola e dos meus professores. Venho todos os dias à tarde para participar dos campeonatos — a gente se prepara muito. Foi algo que mudou a minha vida, porque antes eu não conseguia falar em público, e a robótica me ajudou muito com isso”, conta orgulhosa. Paula Antonella de Lima de Ponte tem de 12 anos Maycon Hoffmann/RPC Paula diz estar muito feliz com as oportunidades que encontrou no Brasil. Ela compara a experiência escolar em Curitiba com a que tinha na Venezuela e destaca as diferenças. "Lá não era comum ter projetos, biblioteca e essas coisas", afirma. Nos momentos de lazer, ela adora conhecer os parques da cidade. "Gosto de passear no Parque Tingui e de levar meu cachorrinho para o Jardim Botânico", diz sorrindo. Helga, diretora da escola, afirma que é fundamental ouvir as famílias imigrantes. "É um desafio a mais na educação, lidar com a diversidade e com a língua, que no começo pode ser mais difícil, mas também integrar todas essas culturas", diz. Ela relembra episódios que marcaram o início desse processo de adaptação. Em uma das primeiras experiências com estudantes haitianos, a escola pediu que os alunos trouxessem “um prato doce ou salgado” para uma confraternização. A interpretação causou surpresa. “Uma criança haitiana trouxe um prato com açúcar porque ela entendeu o prato doce como um prato com açúcar, não com bolo ou com alguma coisa doce.” Para Helga, a situação mostra como é importante esse aprendizado e ressalta a importância de reconhecer a bagagem de cada estudante para construir a aprendizagem a partir disso. “Me tornou mais humana. É trabalhar a inclusão de todas as crianças, de todas as situações, respeitar a história e as vivências de cada um.” Helga Camila Batista Aguiar é diretora da Escola Osmar Sabbag Maycon Hoffmann/RPC Andressa Haruko Nahirni de Oliveira é professora de espanhol da escola Osmar Sabbag e enfrenta diariamente o desafio de ensinar crianças migrantes a se integrar ao ambiente escolar. Nesse processo que gera acolhimento, ela detalha que o desafio vai além da língua. "Eu procuro trazer várias oportunidades para esses alunos, em leitura, música, socializar, deixar o outro amigo falar, ter a calma de ouvir... Por mais que você tenha um pouco de conhecimento da língua, eles falam de uma maneira diferente da que você aprende, e a gente trabalha com as crianças justamente assim: tenha paciência [...] Se deve abrir o leque de oportunidades para eles se expressarem, para eles falarem o que eles estão sentindo naquele momento, às vezes o que eles passaram para chegar até o Brasil, né?" "Então ele fala, como ele chegou no Brasil, por onde ele passou, quais foram as dificuldades que ele teve para chegar, quais foram os meios de transporte e as crianças brasileiras falam: 'Nossa, você passou por tudo isso'?". Essa abordagem permite que os alunos brasileiros compreendam melhor os desafios enfrentados pelos colegas migrantes e amplia a empatia em sala de aula". O acolhimento versus o 'ciclo de nãos' Maria Fernanda Pedroso, coordenadora da Cáritas Arquidiocesana de Curitiba, afirma que o acolhimento de famílias migrantes muitas vezes esbarra na burocracia. Segundo ela, a Cáritas realiza encaminhamentos para secretarias e serviços públicos na tentativa de garantir vagas, mas muitas vezes os obstáculos surgem por falta de conhecimento dos profissionais que atuam no atendimento. Ainda assim, ela ressalta que muitos impasses podem ser resolvidos com gestos simples. "O migrante já recebeu tantos ‘nãos’ que, quando ouve mais um — especialmente depois de termos dito que daria certo —, a frustração é enorme [...] A gente atende com calma. Às vezes, só uma ligação ou um e-mail resolve o problema e ele consegue a vaga. Por isso, é essencial a conscientização de quem está na ponte, principalmente na Secretaria de Educação. A vaga em creche, a partir dos 4 anos, é um direito e um dever — a negativa não pode acontecer, mas, infelizmente, ainda acontece", pontua Maria Fernanda. Maria Fernanda Pedroso é coordenadora da Cáritas Arquidiocesana de Curitiba Maycon Hoffmann/RPC A Secretaria de Desenvolvimento Humano de Curitiba possui um departamento que coordena ações voltadas a migrantes e crianças. Para integrar melhor políticas públicas e ouvir a população migrante, foi criada a Comissão para Política Migratória Municipal, cuja primeira reunião, em setembro deste ano, reuniu 20 órgãos públicos e organizações de apoio a migrantes e refugiados. Amália Tortato, secretária da pasta, destaca que a integração é essencial e que o município investe em formações para que as informações cheguem aos profissionais que atendem diretamente a população. Ela afirma que o município oferece aulas de português em todas as 10 regionais da cidade e busca ampliar a oferta, promovendo também a integração cultural. “Fazer essa integração é bem importante. E as escolas fazem isso de maneira brilhante. Nosso desafio maior é integrar os adultos. A escola é um lugar muito rico para isso acontecer, e estamos falando de crianças, né? O que a criança tem a ensinar para nós é a fazer com que a gente volte à nossa memória, à nossa infância, lembrar de quando só pensávamos em brincar, olhávamos para o colega vendo semelhanças, sem procurar diferenças. A criança nos ensina isso todos os dias: a olhar com carinho, acolher, trazer para perto, e a gente precisa, às vezes, reaprender isso.” Pesquisadora cria protocolo de acolhimento para crianças migrantes Crescimento de crianças migrantes em Curitiba força adaptação da rede escolar Os desafios exemplificados em Curitiba são vividos pelos migrantes em muitas cidades enquanto o poder público e entidades se unem para encontrar as melhores soluções de acolhimento. Laura Amato, doutora em Letras e pesquisadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM-ACNUR) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), ajudou a criar um protocolo para melhorar o acolhimento de crianças migrantes na rede municipal de Foz do Iguaçu. O documento oferece orientações práticas para professores e gestores, incluindo levantamento sociolinguístico e estratégias para integrar língua e cultura dessas crianças ao ambiente escolar. O primeiro levantamento começou em 2017, identificou cerca de 300 alunos migrantes nas escolas municipais. Desde então, o número vem crescendo, acompanhando o aumento do fluxo migratório na região de tríplice fronteira. A partir do diagnóstico, a pesquisadora coordenou, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação e o grupo de pesquisa a criação de um protocolo de acolhimento para crianças migrantes. O protocolo busca oferecer instrumentos para que as escolas possam acolher, de forma mais sensível e eficiente, e reconhecer a diversidade linguística e cultural como parte essencial do processo educativo de aprendizado mútuo. "As respostas dos nossos caminhos estão nelas [crianças]. Aprendi que nossas necessidades nem sempre são as delas. Elas querem ser valorizadas pelo que sabem, mostrar o que conhecem." Durante a pesquisa, ela conta que se surpreenderam com as necessidades do que as crianças gostariam de aprender em português. “Achávamos que elas queriam aprender português para coisas práticas, como ‘abre o caderno’ ou ‘fecha o caderno’. Mas não. Elas queriam dizer ‘eu te amo, professora’ e ‘por favor, desliga o ar-condicionado'". Para Laura, também é preciso olhar para a família como um todo, especialmente, as mães, para pensar no cuidado das crianças. “Não é possível você trabalhar só a infância migrante — você precisa trabalhar a maternidade migrante, que envolve diversos aspectos, desde a forma de parir até os cuidados com a criança. Não se trata de impor, mas de compreender. Se a gente entende o que aquela cultura traz, conseguimos educar mostrando outros caminhos.” Serviços de acolhimento para migrantes no Paraná O Centro Estadual de Informação para Migrantes, Refugiados e Apátridas do Estado do Paraná (CEIM), oferece informações à migrantes, refugiados e apátridas quanto ao acesso a serviços públicos estaduais e municipais. Entre as instituições parceiras estão a Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Cidadania (SEJU), Secretaria de Estado da Educação (SEED) e Secretaria de Estado da Saúde (SESA). Rua Desembargador Westphalen, 15 - 13º andar - Edificio Dante Alighieri - Centro - Curitiba ceim@seju.pr.gov.br (41) 3224-1979 Atendimento das 8h às 16h30 No Poupatempo Paraná a população tem acesso a mais de 200 serviços de órgãos estaduais e parceiros. Desses serviços, 19 são voltados especificamente à população migrante, refugiada e apátrida, como orientações e encaminhamentos para diferentes áreas. A lista de serviços para a população migrante inclui encaminhamentos para Unidades Básicas de Saúde ou Unidades de Pronto Atendimento, acompanhamento psicológico via Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de assistência social por meio de Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e Fundação de Açao Social (FAS). Há assistência jurídica através das Defensorias Públicas e encaminhamentos para órgãos de segurança pública, como a Polícia Civil, e também para a Casa da Mulher Brasileira. Av. Sete de Setembro, 2775 - Batel, Curitiba Atendimento de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h O atendimento é realizado mediante agendamento prévio no site do Poupatempo Paraná ou nos totens interativos disponíveis na própria unidade. Na Cáritas Curitiba oferece atendimento a migrantes e refugiados por meio de programas de acolhimento, busca por emprego e apoio a direitos. Avenida Jaime Reis, 369 - São Francisco - Curitiba Atendimento das 9h às 15h, de segunda a quinta-feira O agendamento para receber atendimento deve ser feito pela internet *Com colaboração de Matheus Karam e Maria Pohler, assistentes de produtos digitais do g1 Paraná. Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do Global Center for Journalism and Trauma. Vídeos mais assistidos do g1 Paraná: Leia mais notícias em g1 Paraná.

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